Estava hoje conversando com uma grande amiga sobre a estrutura das cidades e o quanto muitos grupos de pessoas são esquecidos e se tornam invisíveis, como se não existissem. As cidades são construídas e estruturadas para pessoas sem nenhuma dificuldade de se locomover, ver ou ouvir. Digo “as cidades”, mas falo de todas as estruturas, públicas e não públicas. Tivemos a experiência no ano passado de viajar com um grupo de trabalho e percorrer quase todos os hotéis de Mossoró em busca de um que pudesse receber uma cadeirante como hóspede. Vivemos uma grande decepção pois a estrutura hoteleira daquela cidade, como de muitas outras, não está preparada para esse tipo de hóspede, seja porque não dispunham de elevadores, ou não possuíam portas largas o suficientes para permitir a passagem de uma cadeira de rodas, inclusive nos banheiros, ou não possuíam rampas. Nessa maratona desesperada - porque nossa jovem colega cadeirante, pessoa cultíssima e um ser humano de primeira qualidade, chorava copiosamente - encontramos “um anjo”, desses que ainda perambulam na terra e que ainda enxergam e amam os outros seres humanos, que nos viu. Esse anjo hospedou nossa jovem e doce companheira de trabalho na sua casa simples e acolhedora, “ casa de gente” , onde enxugou suas lágrimas e lhe deu conforto.
Falava desse episódio com a minha amiga, e coloquei minha indignação diante da invisibilidade de tanta gente boa que eu conheço. Então ela, que não tem nenhuma deficiência, me falou da sua experiência de muitas vezes também se sentir invisível. Eu a princípio não entendi, pois essa minha dileta amiga é uma médica bem sucedida, inteligente, pessoa agradabilíssima, além de ser um dos seres humanos mais bacanas e solidários que conheço. Ela me chamou a atenção para um assunto muito discutido ultimamente que é o império da beleza, a exigência de que as pessoas atendam a padrões estéticos escravizadores, nos quais ela não se enquadrava e não fazia nenhum esforço para tal, em razão dos seus valores e filosofia de vida. Estar fora desses padrões, no entanto, lhe proporcionou a sensação de muitas vezes ser invisível, principalmente aos olhos masculinos, e mesmo aos femininos, que a desqualificavam pela sua aparência, sem ao menos conhecê-la.
Refletindo sobre isso, pensei no quanto o “ter”, o “parecer ser” tem valido muito mais do que o “ser”. Do quanto uma simples imagem tem tido muito mais valor que o conteúdo. Ninguém mais vê nem se vê verdadeiramente. A grande maioria de nós permanece invisível em muitos momentos das nossas vidas, pelas mais diversas razões, e o universo perde com isso. A estrutura das cidades limita o acesso de pessoas com os mais diversos tipos de deficiência, dificultando essas pessoas de estarem nos espaços públicos, emprestando sua cultura, seu talento, seu calor humano, sua humanidade. A indiferença das pessoas limita a convivência humana, a interação, segregando quem foge dos padrões estéticos ou mesmo de padrões morais hipócritas. Precisamos escapar desse universo cheio de pequenez, onde as pessoas não são vistas, e que para serem vistas seja necessário ou já nascer dentro desses padrões socialmente construídos ou se alienar e usar as máscaras colocadas a nossa disposição pelos avanços tecnológicos e/ou cirúrgicos.
Perguntamos, colocando agora o verbo "escutar" como sinônimo e como parte desse processo de "enxergar": Quem escuta a criança, com sua sabedoria sincera e divina? Que escuta e respeita a crítica do adolescente, inflamado de novas idéias e ousadia? Quem escuta a mulher pobre e negra, com a sua experiência de luta e fortaleza? Quem escuta e acata a sapiência da mulher rural? Que escuta o povo cigano, sempre alvo de desconfiança? Quem se dá ao trabalho de traduzir o que as pessoas mudas querem dizer? E os surdos-mudos? E as pessoas idosas com toda sua sabedoria e experiência - Quem as escuta- e quem lhes dá atenção? Muitas estão em quartos nos fundos dos quintais - ou nas dependências de empregada. E por falar em empregada quem escuta a empregada doméstica? Quem vê e escuta as pessoas travestis e procura entender e respeitar seu universo peculiar e sua visão de mundo? E vou mais longe, atendendo à indignação da minha amiga, quem enxerga e escuta a mulher inteligente, profissional, como a médica da qual lhes falei, que não atende aos padrões da escravidão estética, quando a mesma se desveste do simbolismo, do status do jaleco? E você? Quem lhe escuta? Quem lhe enxerga? Quem você enxerga?
Precisamos derrubar essas barreiras culturais que nos impede de usufruir da delícia de enxergar e sentir as pessoas que estão tão perto de nós, de ver e amar esses seres humanos maravilhosos que existem, cheios de criatividade, de sensibilidade, de humanidade e de amor.
Escrito em 26 de maio de 2010