MARIA BERENICE DIAS: Advogada especializada em Direito Homoafetivo; Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS; Vice-Presidente Nacional do IBDFAM; Autora de vários livros jurídicos. Sítos: www.mbdias.com.br; www.mariaberenice.com.br; www.direitohomoafetivo.com.br
A Lei 11.340/06, a chamada Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher, modo expresso, enlaça as relações homossexuais. Isto está dito no seu artigo 2º: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual [...] goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. O parágrafo único do artigo 5º afirma que independem de orientação sexual todas as situações que configuram violência doméstica e familiar.
No momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial proteção.
No entanto, a lei não se limita a coibir e a prevenir a violência doméstica contra a mulher independentemente de sua identidade sexual. Seu alcance tem extensão muito maior. Como a proteção é assegurada a fatos que ocorrem no ambiente doméstico, isso quer dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo são entidade familiar. Violência doméstica, como diz o próprio nome, é violência que acontece no seio de uma família.
Diante da expressão legal, é imperioso reconhecer que as uniões homoafetivas constituem uma unidade doméstica, não importando o sexo dos parceiros. Quer as uniões formadas por um homem e uma mulher, quer as formadas por duas mulheres, quer as formadas por um homem e uma pessoa com distinta identidade de gênero, todas configuram entidade familiar. Ainda que a lei tenha por finalidade proteger a mulher, fato é que ampliou o conceito de família, independentemente do sexo dos parceiros. Se também família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Basta invocar o princípio da igualdade.
A partir da nova definição de entidade familiar, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar sustentando que, em face da omissão legislativa, não é possível emprestar-lhes efeitos jurídicos.
O avanço é muito significativo, pondo um ponto final à discussão que entretém a doutrina e divide os tribunais. Sequer de sociedade de fato cabe continuar falando, subterfúgio que tem conotação nitidamente preconceituosa, pois nega o componente de natureza sexual e afetiva dos vínculos homossexuais. Com isso, tais uniões eram relegadas ao âmbito do Direito das Obrigações, sendo vistas como um negócio com fins lucrativos. No final da sociedade, procedia-se à divisão de lucros mediante a prova da participação de cada parceiro na formação do patrimônio amealhado durante o período de convívio. Como sócios não constituem uma família, as uniões homoafetivas acabavam excluídas do âmbito do Direito de Família e do Direito das Sucessões. Esta era a tendência majoritária da jurisprudência, pois acanhado é o número de decisões que reconheciam tais uniões como estáveis.
A eficácia da nova lei é imediata, passando as uniões homossexuais a merecer a especial proteção do Estado (CF, art. 226). Em face da normatização levada a efeito, restam completamente sem razão de ser todos os projetos de lei que estão em tramitação e que visam a regulamentar, a união civil, a parceria civil registrada, entre outros. Esses projetos perderam o objeto uma vez que já há lei conceituando como entidade familiar ditas relações, não importando a orientação sexual de seus partícipes.
No momento em que as uniões de pessoas do mesmo sexo estão sob a tutela da lei que visa a combater a violência doméstica, isso significa, inquestionavelmente, que são reconhecidas como uma família, estando sob a égide do Direito de Família. Não mais podem ser reconhecidas como sociedades de fato, sob pena de se estar negando vigência à lei federal. Conseqüentemente, as demandas não devem continuar tramitando nas varas cíveis, impondo-se sua distribuição às varas de família.
Diante da definição de entidade familiar, não mais se justifica que o amor entre iguais seja banido do âmbito da proteção jurídica, visto que suas desavenças são reconhecidas como violência doméstica.
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